sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Cálice

Embriago-me do odor festivo
E a gota massacrada na base da taça
Lágrima dos olhos meus
Deixa verter em mim o amor

Entrego-se-me a alma ao corpo
E beijo lábios carnosos
De sabor elegante e trêmulo

E ainda eu tomo o primeiro gole
Enquanto resta o cristal amolecido
Do vermelho sugado da gota final

O cálice me é um primor
Prezo-o pelo fascínio militar
Que se ergue dele, esplêndido

E a pena, que pena!?!

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Primavera

Hoje eu sou primavera.
Mas eu também já fui cinderela.
Meus espinhos brotaram ainda hoje.
Bem cedo com o andejo desejo.

Se viçosas pétalas e flores
Imponentes me fazem ainda.
Ex-cravo lhe faço também.
Se destoas do canto da ave.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Malabares

Digas-me porque dizes “Do amoroso esquecimento”
Algo de outrora amado te vai desvanecendo agora?
Ou agora és tu que escutas a mim, dizendo assim?
Porque do que escreves me convém sempre.
E se tão apaixonado quanto sou és pela palavra
Dela viveria invariavelmente, e feliz, acrescento.
Mas que dela não me viesse nunca meu pão.
Senão de nobre a pobre iria em segundo.
Que (só) escrevo de alma e encanto. Malabarismo!
Arte! É meu invento, e com as palavras danço.
Quando me julgo entendida deveras é que não fui.
E o que proferi parece despencar das mãos do leitor.
Depois afina-se novamente, sem cordas, sem palheta.
Só com dor, ou contentamento ou exame.
Porque a palavra tem dessas coisas de se fazer dúbia.
Equívoca, imprecisa e multifacetada. Burlesca!
Hás de me prestigiar pela palavra arte-feita que fiz?
Porque só tu, meu bem, não podes faltar a celebrar-me.
Malabares, há de ser o título (do poema de nossas palavras).

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Fotografia

A fotografia só não pôde capturar seu olhar
Murcho, enviesado e cabisbaixo
Não se atreveu a fazer-se apreendido.
Mas a gola encardida do trapo que vestia
Eu pude confiscá-la para mim.
O corpo quebradiço e opaco então!

Nem sei se o vento o derrubou ali
Ou se foi a fome mal-matada de ontem.
Mas o chão parecia assim macio como a pele,
De aspereza tão simbaíba e tão estúpida
Austera como a nublagem do dia fosco nascendo.
Se vida tinha, foi outrora, há muitos invernos.

Pra saburra da língua calculo década apenas,
Porque ainda não apodreceu por inteira.
Chupado, desgraçado e até mole
Pendia um beiço banguela da gengiva,
Perto d’uns globos amortalhados e azuis.
Quem nem mais suplicar podiam de fracos.

Exalava morrinha de noites inteiras
E só quando a mancha tocou-lhe nas ancas
Percebeu o cobertor tão úmido e frio
Da chuva que encolhera seus membros
Os passantes jamais o viram ali.

De tão atilado fora o coice levado
Não reclamou nunca a vida que (não) teve.
Porque não lhe pegou nas ancas, nem nuca
Mas no brio, na sola do orgulho próprio.
E disso, jamais se rezinga menino atinado
Porque admirável mesmo no homem é outra coisa:
É ser honradamente estúpido e aparvalhado.

domingo, 29 de maio de 2011

Escravidão

 
Quando transpuseres a soleira
Da minha porta
E avançardes passos adentro
E já puderes contemplar de perto
O piano, os assentos e aposentos
Não mais serás um homem livre
Serás servo, escravo e capacho
E inútil há de ser alforriar-te
Já teu amo será teu deus
E decerto quando puseres mesa
Não haverás de saciar-te inteiro
Dar-se-á o caso de apoquentar-te
E tirarás de teu senhor as alparcas
E lhe trará os almudes de vinho
E vestirás sua nudez
E hás de tomar-lhe as mãos ao passeio
Então teu preço nem hás de saber
E servirás eternamente
Até que tornes a transpor, num ataúde
A soleira maldita de teu amo.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Batalha

Sou aquela
Cujo coração foi dilacerado
Pela ínfima e cruel vida
E o peito
Carcomido por um verme imortal
Numa pérfida batalha
Apocalíptica...

Fui uma vela
Assoprada na escuridão
Fui o sangue que correu um dia
Pela estria do cácere
E asas tomei da solidão
Para a eternidade e a morte...

Ainda que seja para a morte
Voei, voei...
Sem que saltasse de lugar nenhum...

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Paraíso


No Paraíso do inferno morno
As banhas moles se platifam
Com o Zum Zum Zum ardido
Dos xingos desgraçados de mães

O filho da puta velha
O viado de cu sem dono
O bêbado de terça a tarde
O catarrento de fuça larga
Se estremunham todos num só fedor
Numa (des)harmonia silábico-fonética

A comida requentada de ontem
Vai descendo (quando tem) goela'baixo
Pra encher os buchos d'uns
Sem fundo ou gosto algum

As feridas melequentas dos pivetes
Cachorros lambem, deliciosamente
Depois do cio das cachorras vizinhas.

Ah, e dizem que seu Dorogildo é marrento
(Mal sabem que come as quengas da Lia)
O sol escalda a lama aguacenta
Das frieiras entre os dedões dos pés
As moscas borbulham na podridão
Do esgoto correndo no asfalto

Enquanto isso a negra ali
Vem com seus grandes dedos largos
E unhas vinho há mês mal feitas
De cima do seu tamanco bicolor
Ostenta dois peitos balofos apertados
Pulando de um apertado sutiã
Que foi púrpura um dia
Nos seios da patroa siliconada da tiazona

A modorrenta vida do cão
Estirado sobre o poço seco
Da casa morrinhenta de janela amarela
Parece do ‘bão’ e do ‘mió’.
Sem cria choramingando fome
Nem ‘hômi’ pra lhe descer o braço
Ou foder as enteadas púberes.

Ainda dizem que eu sou o poder...

sábado, 23 de abril de 2011

Lacuna

Raros lampejos os de amor que me acometem.
São quase orgásticos!
Me roubam o estado primitivo indiferente
Arquitetam-me pra vida,
Insossa e apetitosa que ela é.
E delatam-me impreenchida.

A chita verde que me indumenta
Torna-me bela e coitada.
Me veste a nudez desesperadora e mortífera de ser!
Refém, servil produto de mim mesma!

Macios, meus gritos se dissipam um dia
Mas esfregam-se-me antes à face
A estranha lacuna de (ser) que me fiz.
Sem eleger nada, tudo escolhendo a dedos
Decepados de mãos inúmeras
De incontáveis e desgraçadas proles.

Valéria Lopes

Valéria

Vermelho, vinho
Violáceo
Via-láctea

Vaidade, vício, vontade.
Vitoriano verme.
Véus violados; vida.

Vinco
Veia
Vontade
Voraz

Volúpia vívida
Viração.
Vim ver!

Virgem velada
Vintage.
Vitelo

Virtude vã,
Vertida.
Vigor!

Veto,
Volto
Vulto!

Vinde!
Vade!
Vadia

Vela,
Velório verbal
Vernáculo vital
Vínculo.

Vis viscaris volátil
Vendai-vos?
Vídeis

Voz, valei vossa verdade.
Vencida, vítima,
Vitoriosa! Vórtice,
Vértice

Valéria

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A uma amiga que cresceu


E houve um dia perfeito
Em que o sol brilhou diferente.
Quando ainda desabrochavas flor:
No verdor e exuberância da gênese,
Necessitada de cuidados constantes.

Contudo, as felicitações a cada ano,
Amassaram tuas pétalas viçosas.
E cada novo abraço dos teus
Sacudiu teu pólen fecundo.
Fê-lo cair por terra.

Brotou
Arraigou-se
Cresceu
Floresceu
Frutificou

És agora árvore frondosa.
De frutos abundantes e doces.
De raízes profundas e densas.
Alvitre de cada dia que se foi.
E serviçal do alegre viver.


Valéria Lopes
Anápolis, 12 de janeiro de 2009.